propósito do jejum proposital
O jejum é uma prática milenar difundida entre diversas culturas, seja por motivos religiosos, culturais ou medicinais, muitos povos se utilizam dessa estratégia sem prejuízo ao desenvolvimento físico e intelectual. Atualmente é possível encontrar profissionais de saúde, tanto médicos como nutricionistas, utilizando tal abordagem para tratar síndrome metabólica, controle emocional compulsivo, obesidade e controle glicêmico em diabetes mellitus tipo 1 e a remissão da do tipo 2. Porém, é necessário que alguns cuidados sejam reservados para que o indivíduo não cause prejuízo ao organismo e o impeça de se desenvolver adequadamente.
É bem fácil imaginar que a espécie humana evoluiu para o tipo que somos hoje fazendo jejum e comendo proteína animal. Em anos ancestrais, em que não havia lanche antes da saída para caçar (o que deveria ser uma atividade extenuante) ou técnica de preservação eficiente de alimento por tempo suficiente para manter a família constantemente em estado alimentado até o próximo sucesso numa caçada, pois ainda havia a possibilidade de sair em busca de alimento e retornar sem conseguir nada, os “humanos” conseguiam gerar energia para realizar as atividades diárias a partir de seus próprios estoques de gordura e glicogênio corporal. Contudo, quando conseguiam se alimentar o faziam com o entendimento de que era necessário escolher as partes mais calóricas da caça, ou seja, os cortes mais gordos, e as partes mais nutritivas, vísceras e até sangue, o que garantiria bom aporte calórico e proteico, possibilitando o desenvolvimento cerebral e muscular. Vários estudos apontam nessa direção.
A nutrição é uma disciplina que está em desenvolvimento constante e por isso é difícil pregar uma verdade absoluta e definitiva. É necessário ficar atento às novas descobertas e acompanhar as pesquisas publicadas. Nesse contexto, é preciso entender a hierarquia dos artigos de pesquisa e ficar precavido com metodologias pouco graduadas e seu uso inadvertido para estabelecer causa e efeito, pois nem sempre os mecanismos vistos em relatos de caso se mostram verdadeiros num experimento randomizado. Assim, relatos de caso e opiniões de profissionais, servem antes para apontar um sentido em que a pesquisa deve seguir ou não, mas não servem para cravar causa e efeito definitivamente.
Há muito tempo o jejum e o controle de ingestão proteica servem para tratamento de epilepsia refratária e já era usada para amenizar os prejuízos do diabetes mellitus do tipo 1, antes do uso da insulina exógena. No caso de doenças mentais a busca por indução de estado cetogênico faz necessário o controle de consumo de proteína, pois a proteína também acaba por estimular a produção de insulina e impedir a produção de corpos cetônicos que auxiliam o tratamento medicamentoso. Já no caso do diabético, a proteína estimula a produção de glucagon, que acaba por produzir glicose e aumentar a glicemia sanguínea o que prejudica seu controle e tratamento.
Dito isso, temos que ter cuidado ao acusar deliberadamente o jejum ou a restrição proteica de causar algum problema de saúde. As individualidades devem ser respeitadas e a intervenção alimentar deve ser personalizada para que os pacientes possam seguir bem e o alimento e quantidade de caloria auxiliem no lugar de atrapalhar sua condição, seja ela saudável ou adoentada.
Entretanto, a proteína, sabemos, é um macronutriente fundamental para construção de tecido, produção e secreção de hormônio e enzimas essenciais e sua ingestão diária deve ser atendida em todas as refeições. Numa criança, em condições adequadas, a síntese proteica é mais que o dobro de um adulto, logo a alimentação deve levar isso em consideração. Sua demanda proteica precisa ser atendida e o fornecimento de calorias apropriado, melhor seria se a intervenção nutricional permitisse que a proteína fosse utilizada para as funções acima descritas e as calorias viesse de outras fontes. Assim, a prescrição alimentar de uma criança deveria iniciar pela meta de proteína e a partir daí os outros macro e micronutrientes e a restrição alimentar não deveria ser praticada sem critério meticuloso.
Talvez seja o caso de apontar aqui que a lista de alimentos que compõem a cesta básica brasileira poderia levar em consideração o consumo adequado de proteínas para as famílias e as políticas públicas voltadas para saúde social e a alimentação escolar deveriam prestar atenção nesse ponto.
Uma criança está em desenvolvimento muscular, esquelético e cerebral contínuo e restringir sua ingestão calórica e proteica, salvo por motivo de força maior, atrapalhará seu crescimento e maturidade. A demanda é alta, seja para produzir seus hormônios, enzimas, construir e reparar tecidos e ainda assegurar seu gasto basal somado ao gasto de suas atividades físicas e atividade cerebral. Logo, restringir sua alimentação pode impedir que se desenvolva intelectualmente e fisicamente.
Em todo o caso, existe um problema sério de alimentação hoje, também com as crianças. É crescente os estudos e relatos de obesidade associada a desnutrição e o alto consumo de produtos alimentícios ultraprocessados. Ainda, numa sociedade influenciada e dirigida por redes sociais, onde seus protagonistas ali estão muito mais preocupados com o engajamento que a saúde de seus seguidores, é fácil nos depararmos com escolhas equivocadas para tratamento de distúrbios provocados por excesso de calorias e pouca ingestão de nutrientes.
Trata-se de um problema crescente e complexo, onde propostas de soluções simples parecem ser equivocadas para resolver a situação. Devemos todos nos engajar e cada categoria de profissional fazer o possível para influenciar no pensamento social vigente para melhorar a alimentação e hábitos de nossas crianças e seus familiares e cuidadores.
Assim, não será o sentenciamento do jejum intencional e planejado que solucionará nossas questões alimentares. Há prejuízo para uma criança que precise passar por restrição calórica, mas é possível praticar jejum sem prejuízo de ingestão de calorias adequadas. Com a escolha de alimentos densamente nutritivos e minimamente processados podemos garantir o aporte calórico necessário e alcançar a meta proteica que assegurará seu pleno desenvolvimento.